Nesta semana viralizou um vídeo em que um mestre de Capoeira, em pleno evento feminino, suspende no ar uma capoeirista e beija suas nádegas.
Ao colocá-la no chão, recebe uma cotovelada e um tapa, revidando imediatamente com um chute que a joga longe.
Todos os elementos de uma notícia bombástica estão ali: exposição pública do corpo feminino, violência gratuita, covardia e um terreno fértil para o esporte preferido dos tablóides sensacionalistas: fofoca.
Teria sido lindo se algum capoeirista presente, QUALQUER UM, independentemente de gênero, idade ou tempo de Capoeira, tivesse entrado na roda e gritado: “Iê! Parou!” e dito: “Enquanto não se discutir o absurdo da situação que houve aqui não tem cabimento continuar a roda!” e aberto uma roda de conversas para debater a questão, expondo o ridículo do ato impróprio. Se a roda é de todos, todos são responsáveis.
Mas isso não aconteceu. Nunca acontece. A indignação vem depois, via facebook.
Quantas vezes não vimos situações de opressão ou de violência muito parecidas com essa, em que ninguém falou nada?
Três coisas me chamam a atenção nesta roda:
- A normalização da violência contra a mulher: o corpo da mulher é historicamente explorado pelos homens, que se sentem no direito de fazer com ele o que bem entendem, ao ponto do tal mestre se sentir no direito de beijar a bunda da sua oponente e ninguém parar a roda para falar nada.
- A normalização da violência na Capoeira: uma roda de confraternização tem um jogo onde após uma suspendida, uma cotovelada, um tapa e uma bicuda ninguém para a roda para falar nada.
- A normalização da violência discursiva: um bombardeio de comentários que incitam ainda mais a violência se espalham como fogo no facebook. Todos falamos muito.
VIOLÊNCIA
O tal mestre provavelmente foi convidado para o evento e certamente não foi a primeira vez que resolveu mostrar toda sua valentia. Sobram dúvidas: quem o convidou? Por que ninguém falou nada? Por quê não se parou a roda?
O cara errou. Errou feio. Errou de um jeito que nunca mais vai errar. Qualquer tipo de violência contra uma mulher deve ser reprimida. Ponto final. Não há o que relativizar.
Mas cooommooo isssoo foi aconteceeeer??? Uma dúvida: será que ele é tããããooooo diferente dos demais capoeiristas que estavam ali? Ou de todos nós?
O cara está sendo execrado e linchado publicamente, recebendo dezenas de ameaças dos valentões do facebook, que lhe enviam convites virtuais para visitar suas rodas e resolver as coisas do jeito Maçaranduba de ser.
Nos comentários do vídeo aparecem homens-machos-masculinos super interessantes, dizendo: “Se fosse minha irmã eu quebrava no pau” ou “Ela é namorada de alguém! Merece respeito”.
Amigo, olha só: se porrada resolvesse e educasse, a cadeia tava cheia de gente educada e regenerada. Não adianta querer ensinar o cidadão que violentou com a mesma moeda da violência. Na política do olho por olho, todos terminam cegos. E não, não é porque ela é namorada ou irmã de alguém que o beijo na bunda foi desrespeitoso, ok?! É desrespeitoso porque foi uma opressão e ponto final.
MORALISMO
O curioso é que de repente aparece um monte de guardiões da moral, todos super revoltados, como se o distinto cidadão que fez o ato tivesse vindo de outro planeta ou de outra arte qualquer. Ele era um marciano praticante de yoga tântrica? Não. É um capoeirista como tantos outros que saiu do seu país para tentar a sorte em terras estrangeiras, levando consigo o seu título de mestre de Capoeira e sua vivência pessoal de ser fruto de uma cultura machista e violenta. O beijo, o chute, o tapa, a cotovelada e todo o resto da cena não se deu numa arte distante de um país desconhecido. Pelo contrário, a cena é bem comum na Capoeira e no Brasil em geral, com algumas variáveis. Na resolução de conflitos da Capoeira, o machismo e a violência são regra, não exceção.
O QUE EU TENHO EM COMUM COM ELE?
É só dar uma breve pesquisa e você vai ver que tem muitos, mas muitos amigos em comum com ele no facebook. Surpreso? Não deveria. Saiba que entre os seus amigos há misóginos, homofóbicos, racistas e imbecis de todas as categorias. Como somos produto do meio, isso quer dizer alguma coisa sobre nós mesmos…
É bem mais fácil xingar o vacilão do que pensar que ele tem mãe, esposa, filha; que tem um mestre de Capoeira; que tem alunos; que é mais um representante da Capoeira na Europa, que já apareceu até no Luciano Huck (pesquisa aí no Youtube)… Que na verdade, ele é muito parecido com o espelho que temos em casa.
EU NÃO SOU MACHISTA! ELE É QUE É!
Todos contra o machismo! Será mesmo? Amigo guardião da moral: não é você que se irrita com a forma de sua namorada de se vestir? Não é você que sempre que vê uma mulher na rua se sente no direito de dizer um “pssssiiiiuuuu”? Não é você que no meio de um evento de Capoeira começa a puxar papo torto com garotas que não te deram abertura para isso? Não é você que chega num curso de Capoeira já contando as horas para o momento de relax onde você vai tentar dar em cima das alunas? Não é você que confunde a admiração de uma mulher pela sua Capoeira com interesse sexual pelos seus atributos físicos? Não é você que é casado com uma capoeirista mas faz questão de que todo mundo saiba que você é pegador sinistrão cheio de amantes?
Quem nunca viu um mestre ou um futuro mestre de Capoeira ser inconveniente com mulheres, seja na roda, seja nos comentários, seja no samba ou nas festas?
A ideia de que o capoeirista tem que ser “pegador” faz parte em grande parte do nosso meio. Assédio sexual na Capoeira é quase sempre jogado para baixo dos panos, com as mulheres tendo que se afastar e sendo constantemente colocadas à prova ao se esquivarem dos ataques físicos que são piores fora da roda do que dentro dela.
Será que não chegou a hora dos capoeiristas homens refletirem mais seriamente sobre suas próprias ações? Será que somos tão diferentes assim do agressor em questão?
SEXO
Uma musiquinha tirada a engraçadinha era cantada até pouco tempo nas rodas de Capoeira e ainda pode ser encontrada nos sites de letras:
De um tempo para cá a coisa melhorou. Pelo menos não se ouve este tipo de imbecilidade na maioria das rodas, mas a sexualização continua sendo parte integrante da nossa cultura. Por exemplo, quando colocamos a palavra “Capoeira” no Youtube qual é o vídeo com recorde de visualizações? Mestre Bimba? Mestre Pastinha?
Não. O primeiro é este, com mais de 22 MILHÕES de visualizações
Quando se liga o vídeo não há nada de Capoeira e sim uma cena de samba. Será que isso quer dizer algo?
A figura feminina faz parte constante dos papos de bar pós-roda. “Comi essa, essa e aquela”, “Viu aquela gostosa de abadá coladinho?”, “Vai ter muita mulher no evento de beltrano?”
Quando as mulheres reclamam do machismo elas são vistas como “exageradas” ou então “estão de mi-mi-mi”.
Neste meio tempo um indivíduo se sente na liberdade de beijar a bunda da oponente na roda, assim como outro se sente na liberdade de chamá-la de “gostooosssaaa” na esquina ou mandar o clássico “te chupo toda” no meio da rua.
VIOLÊNCIA
Seguindo nas buscas do Youtube, chegamos em vídeos deste tipo. Os mais de 2 milhões de visualizações em um ano não dizem nada sobre nós? Sobre o que valorizamos?
Agora, sempre que aparece algum capoeirista desmaiando um adolescente numa roda ou bicando uma mulher num evento brota pacifista de todos os cantos.
Amigo pacifista: não é você que acha maneirão tatuar a testa do ladrão de bicicleta? Não é você que vota em quem diz que “bandido bom é bandido morto”? Que prefere ter filho morto do que gay? Que incita os alunos a darem chutes sem controle, tapas na cara e quedas de wrestling? Não é você que que quando alguém se machuca na roda é o primeiro a dizer: “Deu mole! Se estivesse treinando mais isso não acontecia”?
Não é você que incentiva uma Capoeira cheia de “raça”, “guerreira”, “pronta para tudo”?
Um pouco mais de bom-senso faz bem para todo mundo: não se deveria suspender ninguém numa roda de Capoeira. Tampouco dar um tapa na cara e uma cotovelada, muito menos bicar a caixa torácica de uma pessoa com metade do seu peso. Beijar as nádegas é apenas mais um ato surreal num festival de anomalias que longe de serem alienígenas, dizem muito de nós mesmos.
Se começarem a tatuar cada um dos vacilos que vemos na Capoeira vai faltar testa e tinta…
FOFOCA
Diariamente são postados centenas de vídeos e textos interessantes sobre cultura, política, corpo e outros assuntos super interessantes à Capoeira. No entanto, vídeos escandalosos e mensagens de fofoca fazem mais sucesso. Basta postar algo como: “Tem muito capoeirista comprando seu título de Mestre” ou “Olhe o trabalho de beltrano: isso não é Capoeira!” para se ganhar uma visibilidade baseada na fofoca. Quem nunca viu um mestre de Capoeira que passa a maior parte do seu tempo falando mal do trabalho dos outros?
Essa é a cultura da fofoca, mas isso é assunto para um próximo post! Por hoje é só!
Axé!
PS – Compartilhe este post e comente suas ideias! Se você gostou ou se você acha que estou de “mi-mi-mi”, diga aí e marque os amigos para debatermos juntos!